Sim, vi quando ele chegou aqui. A mãe vinha arrastando-o pela manga da camisa, segurando o filho menor no colo, na pressa louca que só os que sentem fome de vida podem ter. No rosto o sorriso de quem, aos poucos anos já se resignou diante do presente. O olhar daqueles que sabem que esse não é o mar de rosas que a TV, Ana Maria Braga e a Luciana Gimenez falam que é.
Da janela da frente da minha casa, eu não cansava de vigiá-lo enquanto corria para lá e pra cá construindo com madeiras velhas e lona rasgada o que para ele era um castelo fabuloso e inalcançável. A imaginação é pincel, e qualquer coisa serve de tinta.
Brincava sozinho: parecia que vivia em uma dimensão onde a inocência vestia sua jardineira jeans e com uma rosa no cabelo fazia-lhe companhia na hora do pique esconde. Escondia dele todas as coisas vis dos homens, tão comuns de serem vistas num lugar como aquele. E trazia o sorriso mais doce e gentil a estampar-lhe o rosto.
Ele sorria quase sempre, e não se esmorecia por qualquer bobagem como as crianças fazem constantemente hoje em dia: Falta-lhes infância e sobra mimo. Problema sério era fome, irmão caçula. A mãe sem emprego e o fato de que a Rapunzel, que certamente vivia no alto da torre mais alta, ali mesmo, onde ele residia, devia ter um cabelo enorme.
Onde ele dormia haviam mais dez famílias. Todas invadiram o prédio na mesma época, mas só ele tinha o brilho nos olhos que faz a gente não se esquecer da fisionomia. Só ele morava ali, mas vivia em um universo paralelo.
Não tinha roupas, andava maltrapilho: e sendo assim, vestia-se de abraços dos transeuntes. Às vezes lhe faltava o que comer, e alimentava-se do afago do vento. Era sua maneira de não se vitimar diante do sofrimento, era seu salvaguarda quando o frio se portava inclemente e as pessoas pareciam más e cruéis.
E ali, naquela Maloca vertical , ele construía seus barcos e velejava pra longe. Ali ele podia ser homem aranha, Power ranger ou aquele herói verde que ele viu numa revistinha que achou no lixo. Para ele, o prédio invadido, inacabado, era um lar. Porque lar é onde o bumbum descansa e onde o coração pode chorar ou rir sem ter que dar um por quê.
No dia que o incêndio se deu, ele estava lá. A mãe tinha levado o irmão mais novo ao trabalho. E meu menino estava feliz por não precisar cuidar do irmãozinho. Podia fazer pipa, correr na rua sem segurar a mão do pequeno, sem se preocupar se ele ralaria o joelho e a mãe ficaria brava. Tava contente que só, no começo. Depois veio aquela tristeza que a liberdade às vezes trás, e ele ficou acabrunhado em casa. Imaginando coisas e ouvindo sons, pois quando estamos acostumados com gente, gente que amamos sempre por perto, a solidão dos queridos nos enche de medo.
E que susto tomou, quando o monstro apareceu à sua frente? Cinzento, esfumaçado e soltando aquele cheiro ruim e o calor insuportável. Vinha passando pelo buraco do teto. Devia ocupar todo o andar de cima, pois era um monstro grande e poderoso! Quando me contou sobre o monstro, seus olhos estavam vitrificados, e suas mãozinhas suavam geladas.
Ficou tremendo de medo, que nem bambu verde, e ninguém viu. De tarde, as pessoas dormiam e ninguém se apercebeu da fumaça que saia do andar de cima: que já ia a muito consumido pelo fogo.
Mas ele viu, e de tanto se imaginar herói, de tanto se pensar corajoso, de tanto ser forte pra encarar a vida, decidiu num impulso hercúleo que protegeria todos do temível monstro. De armas: seus pulmões e a voz estridente de criança. E eu não fico pensando que é tão mais fácil se entregar as dificuldades do que lutar para vencê-las? A gente aprende muito com criança.
Gritou. O mais alto que podia. Sacolejou quem encontrou pelo caminho, tirando as pessoas de seu estupor. Sempre precisa ter alguém pra nos mostrar o monstro, não é mesmo?
Só sei que naquele dia ele foi o herói que pensava ser.
Já da rua, ele olhava o prédio em chamas e se perguntava quando o monstro terminaria sua refeição e transformaria aquilo tudo em poeira. Onde ia dormir o irmãozinho? E as coisas da mãe? As roupas de ir trabalhar, as revistinhas que pegara do lixo. Será que o bicho comeria tudo?
E ele pensava, com seus olhos de criança marejados de água, que tudo ficaria bem. Porque a fantasia é um ótimo calmante.
E sem saber, ele era o meu herói. Aquele que me ensinou, na curva do seu sorriso, a enfrentar de peito aberto os percalços do caminho.
Inspirado na notícia - Famílias que ocupavam Prédio em BH são retiradas. - Originalmente escrito para a oficina de textos da Maíra Viana
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