Antes de chegar a esse clímax eu tentei achar uma justificativa dentro de mim, mas não encontrei nada nesse escuro breu. Como é que se acorda depois de uma vida inteira dormindo ao lado de alguém, dizendo ‘eu te amo’, comendo a comida e se percebe que preferia estar em outro lugar, qualquer lugar do que ali?
Ainda lembro, com certa nostalgia e enternecimento, o dia em que te vi atravessar a passarela de olhares e dirigir seus olhos azuis e fugidios aos meus. Um sorriso de certeza nos lábios, um vestido branco cobrindo suas curvas jovens. Ninguém se casa pensando que vai dar errado. E 25 anos depois, a gente pensa que tudo deu certo.
E então, acordar depois da nossa festa de bodas de prata, com glacê de bolo no canto da boca percebendo que minha cabeça girava e não tinha nada a ver com a champagne barata bebida na véspera, teve um peso que nenhum halterofilista conseguiria carregar. Você não saberia o quanto foi difícil, o quanto ainda é. Me perdoe, mas não dizem que casamento foi feito pra mulher? O nosso foi feito pra você.
Vi seu corpo magro e sua pele branca dormindo gentis ao meu lado, e no seu rosto o mesmo sorriso de sempre. Antes eu me encantava ao te ver dormir, e agora eu queria sair de fininho antes de você acordar. Sair do quarto, da casa, da sua vida e da minha vida. Não ressone; não acorde. Eu suplicava no mesmo instante em que tentava remover meu corpo da cama, e ele não saia do lugar com o peso da minha culpa e do meu remorso a quadruplicar os meus 80 kgs.
No quarto ao lado nossos filhos dormiam, e, antes de me mover na cama pensei em todos os nossos planos pra eles, nos nossos sonhos pra reforma da casa, trocar o carro, e pensei em como burocratizamos e institucionalizamos o nosso amor. Era uma questão de nós, e eu não sabia onde ficava o “eu” dentro disso. Tinha medo de pegar minha identidade e ver uma foto andrógena, uma mistura da minha figura agigantada com seus traços diminutos. Eu não sabia mais que cara eu tinha, e não tinha cara de nada.
Não pense você que tirei aquelas fotos por paixão ela moça ou por vaidade. Era puramente covardia. Deixar um celular estourando de fotos comprometedoras, de números comprometedores e de SMS comprometedoras era minha maneira de impor a você uma decisão que eu fui covarde demais pra tomar. Então era fácil demais deixar você ver o que no fundo já sabia: Que fidelidade ficou uns 10 anos pra trás na nossa história. Mas se me perguntasse hoje se troquei por outra mulher, eu te diria que te troquei por mim. Talvez na época eu soubesse disso apenas de maneira subjetiva.
Então, quando cheguei em casa dias antes com a cueca do avesso, não pense que foi sem querer. Eu premeditei tudo nesse homicídio. Eu pensei em cada detalhe que te deixaria no limite, a ponto de tomar a sua decisão. A decisão que já era minha e que eu não tinha coragem. Cueca do avesso pode ser golpe baixo, mas no meu caso eu pensava que seria golpe de misericórdia. Mas você viu, olhou, fez que não viu e desviou os olhos pra revista. Tem coisas que era melhor não notar, né? E então eu tive que usar o estratagema das fotos.
Matei nosso casamento. Foi um crime qualificado e com intenção, mas foi um crime onde eu fui agente passivo. Deixei em suas mãos a competência de arrancar nossas alianças e atirá-las pela janela. Deixei para seu gênio fêmeo todo o drama e te deixei uma imagem minha que eu não queria que ninguém tivesse.
Fosse eu mais homem e podia ter dignidade, mas covardia só se alia com amor próprio, e preferi por muito tempo cantar o mantra de que você bem que merecia aquelas coisas todas. Fosse eu mais homem, e terminaríamos como tudo começou: com a certeza de fazer a coisa certa.
De consolo me resta o fato de que você sempre foi mais gente do que eu, e que amor pra você era coisa séria. Eu disse consolo? Perdoe. Essa é a dor.
Hoje tenho outra casa, outra mulher, outro corpo deitado ao lado do meu. Outra vontade de sair correndo, outra necessidade de encontrar coragem pra fazer diferente. E outra certeza de que vou acabar fazendo tudo igual.
O problema não era você, a institucionalização, a globalização. O problema era eu. E esse problema continua sem solução.
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